Artigo: A formação médica no Brasil está em risco?

Senador Astronauta Marcos Pontes (PL/SP), autor do PL 2.294/2024; Dr. Hiran Gallo, Presidente do CFM e Senador Marcos Rogério (PL/RO), Relator do PL na Comissão de Educação e Cultura do Senado. Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado

O futuro da medicina brasileira não pode se resumir a números. É preciso um compromisso real com a excelência na formação, garantindo que médicos estejam preparados para atender a população com competência e segurança

*Por Marcelo Morales

Correio Braziliense, em 13/02/2025

O Brasil tornou-se o vice-campeão mundial em número de escolas médicas, com cerca de 390 instituições em funcionamento, atrás apenas da Índia, que tem mais de 600, segundo a Radiografia das Escolas Médicas 2024, publicada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM). Desde 2000, quando o país contava com apenas 80 escolas, houve um aumento acelerado e desordenado, sem o suporte necessário para garantir ensino de qualidade. Se essa expansão continuar no mesmo ritmo, o Brasil pode ultrapassar a Índia em número absoluto de escolas médicas nos próximos levantamentos. Em termos proporcionais, considerando a população seis vezes maior da Índia, estamos à frente.

Esse crescimento descontrolado levanta uma questão fundamental: a expansão de escolas tem ocorrido sem critérios claros, mesmo com a existência de regras regulatórias, resultando na formação de mais médicos, mas sem infraestrutura adequada para garantir um ensino de qualidade. Segundo o CFM, 78% das cidades que sediam faculdades de medicina não possuem a estrutura mínima exigida, como hospitais de ensino, leitos do SUS e equipes da Estratégia Saúde da Família. Sem essas condições, a formação prática torna-se inviável, comprometendo a qualificação profissional e, consequentemente, a segurança dos pacientes.

Enquanto instituições sem condições mínimas seguem sendo autorizadas, universidades de excelência, como a PUC-Rio, enfrentam dificuldades para abrir seus cursos. Esse descompasso revela um sistema regulatório falho, que prioriza quantidade em detrimento da qualidade. Como consequência, profissionais mal preparados chegam ao mercado, agravando os desafios da saúde pública e colocando em risco a credibilidade da medicina brasileira.

O problema se estende à residência médica, etapa essencial para a especialização. O aumento expressivo de vagas na graduação não foi acompanhado pela criação proporcional de novas vagas na residência, criando um gargalo preocupante. Muitos recém-formados, especialmente aqueles que financiaram os estudos pelo Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), enfrentam dificuldades para ingressar no mercado de trabalho e pagar suas dívidas. Além disso, a bolsa de residência é insuficiente para garantir a subsistência em grandes cidades, desestimulando a adesão a programas de especialização e ampliando desigualdades na distribuição de médicos pelo país.

Para enfrentar esse cenário, o Projeto de Lei nº 2294/2024, em tramitação no Senado, propõe a criação de um exame nacional de proficiência em medicina. A iniciativa, apoiada pela Academia Nacional de Medicina, Associação Médica Brasileira e pelo próprio CFM, busca garantir que médicos recém-formados possuam as competências essenciais para exercer a profissão com segurança e ética. Modelos semelhantes são adotados em países como Reino Unido, Estados Unidos e Canadá, onde exames rigorosos asseguram que todos os médicos, independentemente da instituição de ensino, atendam aos mesmos padrões de qualidade antes de atuar.

No Brasil, o exame será um mecanismo essencial para qualificar a formação médica, mas não resolverá sozinho os desafios estruturais do ensino. A abertura de novas escolas deve obedecer a critérios rigorosos, permitindo apenas aquelas com infraestrutura adequada, enquanto as existentes precisam ser reavaliadas e obrigadas a cumprir os padrões exigidos. Atualmente, muitas instituições funcionam sem a estrutura básica necessária, comprometendo a formação dos estudantes e a segurança dos pacientes. É urgente corrigir essas falhas e garantir que todas as faculdades atendam aos requisitos essenciais para uma educação médica de qualidade.

O futuro da medicina brasileira não pode se resumir a números. É preciso um compromisso real com a excelência na formação, garantindo que médicos estejam preparados para atender a população com competência e segurança. Se nada for feito, a qualidade da medicina no Brasil continuará a se deteriorar. O momento exige planejamento, regulamentação eficaz e ações concretas para evitar que a crise na formação médica comprometa ainda mais a saúde pública.

*Médico e biofísico, professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e membro das Academias Brasileiras de Ciências e Nacional de Medicina e da Nacional de Farmácia

*PL 2294/2024 é de autoria do Senador Astronauta Marcos Pontes. Altera a Lei nº 3.268, de 30 de setembro de 1957, que dispõe sobre os Conselhos de Medicina e dá outras providências, para instituir o Exame Nacional de Proficiência em Medicina.

JUSTIFICAÇÃO DO PROJETO

Ainda que o tema objeto desta proposição que apresentamos não seja consensual, entendemos que se faz necessária uma reflexão sobre ele nos dias atuais. Em 2005, o Conselho Regional de Medicina de São Paulo (CREMESP) passou a avaliar os formandos de Medicina por meio de exame de proficiência. Em 2012, a prova tornou-se obrigatória, e os médicos recém-formados precisavam realizá-la para obter seu registro profissional no Estado.

Em outubro de 2015, a Justiça Federal concedeu liminar em ação movida pelo Sindicato das Entidades Mantenedoras dos Estabelecimentos de Ensino Superior (SEMESP) – contrário à participação obrigatória nas provas –,retirando essa exigência para concessão do registro profissional. Independentemente dessas idas e vindas no caráter do exame de proficiência do Cremesp, os resultados da prova, aplicada no Estado mais rico da Federação, evidenciaram um cenário temerário no que tange à qualidade dos
recém graduados em Medicina.

No primeiro ano em que a prova foi obrigatória – 2012 –, entre os 2.411 participantes, 54,5% foram reprovados. Em 2013, 59,2% dos 2.843 recém-formados que participaram do exame foram reprovados. Na décima edição do exame, realizada em 2014, dos 2.891 recém-formados em escolas médicas do Estado de São Paulo, mais da metade – 55% – não atingiu o critério mínimo exigido (acerto de 60% do conteúdo da prova). Nos anos de 2015, 2016, 2017 e 2018, o percentual de aprovação foi de 51,9%, 43,6%, 64,6% e 61,8% respectivamente.

Adicionalmente a esses maus resultados na prova do Cremesp, temos hoje no País um quadro de proliferação indiscriminada de cursos de Medicina, realidade que aponta para o provável agravamento das deficiências verificadas no ensino Médico.

Diante desse quadro de precariedade na formação de médicos, pretendemos reproduzir o modelo de avaliação de proficiência já adotado pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e pelo Conselho Federal de Contabilidade (CFC) no âmbito do Conselho Federal de Medicina (CFM). Para os médicos, em particular, a avaliação ao final do curso é ainda mais relevante, pois erros de diagnóstico, de prescrição ou de conduta podem não só gerar custos sociais para os sistemas público e privado de saúde, mas também causar danos irreversíveis aos pacientes e mesmo levá-los à morte.

Nesse contexto, estipulamos que a aprovação no Exame Nacional de Proficiência em Medicina seja requisito obrigatório para o exercício da Medicina, já que somente a legislação federal pode estabelecer tal exigência.

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